Texto de Alisson Gutemberg


É verdade que a relação entre cinema e literatura não é nenhuma novidade. Inclusive, essa ligação está na base do desenvolvimento do próprio cinema enquanto meio. Já disse em outra oportunidade - quando falei das experiências iniciais do cinema - que o aparato cinematográfico não surgiu como arte. Muito pelo contrário. Tratava-se de um divertimento efêmero. Para se consolidar, no entanto; e, consequentemente, adquirir prestígio, o cinema se aproximou das narrativas literárias. Por exemplo: filmes pioneiros como Viagem à Lua, de 1902, e Sherlock Holmes Perplexo, de 1900, se inspiraram em obras de Júlio Verne e Arthur Conan Doyle, respectivamente.


Há um estudo, inclusive, de João Batista de Brito, que demonstra que, na história do cinema, o número de adaptações literárias ultrapassa e muito a quantidade de roteiros originais. Ainda assim, contudo, nem tudo é aproximação. São meios diferentes. Por um lado, a literatura utiliza a palavra como matéria-prima. Por outro, o cinema se sustenta na imagem. Ao seguir, no entanto, pelo tema das aproximações, é possível citar, ainda, narrativas cinematográficas que não foram diretamente adaptadas de livros; mas, que, ainda assim, se inspiraram em obras literárias. Por exemplo: Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha) e Os Fuzis (Ruy Guerra) são filmes inspirados no Romance Regionalista de 30. Precisamente em obras como O Quinze (Raquel de Queiroz), A Bagaceira (José Américo de Almeida) e Vidas Secas (Graciliano Ramos), livros que alimentaram o imaginário do sertão miserável que atravessa as narrativas de Glauber Rocha e Ruy Guerra.


E essa relação pode se tornar mais complexa. Sergei Eisenstein, por exemplo, cineasta e teórico do cinema, no livro a Forma do Filme, afirma que Madame Bovary foi fundamental para o desenvolvimento de seus estudos acerca da montagem cinematográfica: “é estranho, mas foi Flaubert quem nos deu um dos melhores exemplos de montagem-cruzada de diálogos, usada com a mesma intenção de dar ênfase expressiva à ideia”. Para ele, a literatura está repleta de justaposições de imagens. Como ocorre, por exemplo, nos diálogos entrecruzados na sequência em que Emma e Rodolphe tornam-se mais íntimos.


Além de complexa, no entanto, essa relação também pode ser inusitada. Como é o caso da associação que faço entre Paris, Texas e Doutor Fausto (Thomas Mann). O filme de Wim Wenders, até onde sei, é fruto de um roteiro original. Desse modo, o que me faz associar uma com a outra, na verdade, é um trecho do livro de Mann. Um diálogo entre Adrian Leverkuhn e Serenus (o narrador). Nele, Adrian explica o seu desejo de desenvolver uma “composição rigorosa”. Uma composição que derive de uma série de intervalos multiplamente variáveis de cinco notas h-e-a-e-es (referente a Esmeralda). E cada nota do conjunto da composição, quer melódica quer harmonicamente, deveria comprovar sua relação com essa série. O filme de Wim Wenders, a meu ver, não pode ser outra coisa que não seja uma “composição rigorosa”.


Ora, em Paris, Texas, as cores assumem um caráter especial. São três cores que organizam a narrativa e orientam a composição do universo diegético. Azul, vermelho e branco (Como torcedor do Bahêa confesso que acho a escolha das cores uma maravilha). Uma referência direta à bandeira da França (Paris... bingo!). O vermelho, nesse caso, aparece, por meio de detalhes, enquanto Travis ainda alimenta a esperança de reconquistar o amor de Jane. O azul, por sua vez, representa os entraves encontrados. Como ocorre, por exemplo, na primeira cena em que Travis vai ao encontro de Jane e o tom azulado sobressai na decoração do seu ambiente de trabalho. Por fim, os detalhes brancos demarcam o insucesso de Travis. E aqui aparece mais uma característica do título do filme: diferentemente da capital francesa, a Paris, do Texas, não é a cidade dos amores felizes.


Retornando para o livro de Mann, no entanto, o diálogo entre Adrian e Serenus segue e adentra em um questionamento do segundo: “E tu esperas que alguém possa ouvir isso tudo?” E Adrian responde: “se ouvir significa para ti a percepção exata de todos os meios pelos quais se obteve a suprema e mais rigorosa ordem, uma ordem análoga à do sistema solar, não. Assim elas não serão ouvidas. Mas a própria ordem será, ou melhor, seria ouvida, e sua compreensão proporcionaria uma satisfação estética nunca antes sentida”. E é exatamente o que acontece com Paris, Texas. Uma compreensão estética incomparável independentemente da percepção do papel das cores.

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