Texto de Alisson Gutemberg


O meu interesse neste texto é a relação entre cinema e cidade, um encontro que chamo de cinecidade. O meu argumento é que as cidades – me refiro a espaços distintos, como Londres e Paris, por exemplo, tematizadas pelo cinema  podem formar um único ambiente imaginário, por meio de um continum conceptivo e perceptivo; tal como o faz a imbricação dos termos cine e cidade. A minha observação parte de dois aspectos iniciais: a compreensão de que o cinema formula interpretações (Morin) e que algumas questões exercem peculiar atração para as lentes cinematográficas (Kracauer).


Edgar Morin afirma que o cinema não registra o mundo concreto, mas sim formula interpretações sobre ele. E vou um pouco além: o cinema não só cria interpretações, por meio de enquadramentos, mas, através de suas formulações, também produz uma hiper-realidade. Pensemos nas interpretações cinematográficas sobre o exercício do jornalismo: filmes como Rede de intrigas (Sidney Lumet), A montanha dos sete abutres  (Billy Wilder) e Fogueira das vaidades (Brian De Palma) não captam a totalidade da profissão; o que essas obras fazem é salientar determinados temas do cotidiano e representá-los como o todo, tendo como leitmotiv a falta de ética. É claro que existe falta de ética no exercício do jornalismo, como em qualquer função; todavia, o cinema amplia esse fato. Faz dele um hiper-real.


A lógica da hiper-realidade molda as câmeras e lentes que trafegam pela paisagem concreta e urbana; espaço recorrente nas narrativas cinematográficas. Como já mencionei, Kracauer nos alerta para um fato: alguns elementos são mais visíveis no cinema do que outros; a falta de ética para representar o jornalismo é um exemplo. Foi a partir disso que comecei a pensar em uma cinecidade, pois, se faz sentido o que coloca o autor, é possível encontrar filmes que se passam em diferentes urbes debatendo os mesmos elementos, discutindo as mesmas questões. E quais seriam os temas mais comuns na representação dos espaços urbanos? E é justamente de cada uma dessas investigações que nasce uma cinecidade. Nesse sentido, podem formar uma cinecidade, por exemplo, a Los Angeles do filme Ela (Spike Jonze) e a Buenos Aires de Medianeras (Gustavo Taretto), tendo como aspecto comum as novas formas de sociabilidade que atravessam as sociedades contemporâneas.


O conceito que venho propondo articula determinadas ideias existentes; a compreensão das representações cinematográficas como um universo filtrado (Morin) e a repetição de temas (Kracauer) são dois exemplos já mencionados. Além deles, dialogo com os conceitos e ideias a seguir: cidades contínuas, de Ítalo Calvino, pois, para além dos aspectos singulares, as cidades podem formar espaços ininterruptos; e, por fim, cidade cinemática, de Maria Helena Braga e Vaz da Costa; perspectiva que pensa a cidade fílmica em correlação com o espaço concreto. No entanto, partindo da seguinte hipótese: as cidades visíveis do cinema não são necessariamente o real, mas sim uma interpretação.


Como é possível notar, Maria Helena Costa entende a cidade cinemática como interpretação midiática de um recorte urbano através da correlação entre dois espaços – o fílmico e o real. Essa dimensão entre o espaço fílmico e o concreto também aparece no conceito que estou propondo; porém, para além desse elemento, proponho uma compreensão da cidade fílmica por meio de um recorte mais amplo do que a sua delimitação geográfica.


Na cidade cinemática (Costa), a relação é de 1:1, ou seja, uma cidade imaginária/fílmica para um espaço concreto. A autora não menciona a possibilidade de espaços concretos distintos serem representados pelo mesmo recorte temático, fato que possibilita a construção de um único espaço imaginário; e é nesse ponto que a cinecidade amplia a cidade cinemática. A cinecidade propõe uma expansão – une diferentes espaços a partir de um mesmo traço temático. Por exemplo: o espaço fílmico de uma cidade como o Rio de Janeiro, em filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles; Kátia Lund) e Tropa de Elite (José Padilha), não é apenas uma representação simbólica de um lugar concreto, mas parte de um continuum que perpassa diferentes urbes pela temática da violência, corrupção e tráfico de drogas.


Cornelius Castoriadis afirma que não existe lugar e nem ponto de vista exterior à história e à sociedade. Nesse sentido, as representações das metrópoles, que constituem qualquer cinecidade, estão impregnadas pela história e pelo cotidiano dos espaços concretos; pois, se formam uma paisagem simbólica contínua e um único ambiente imaginário, é porque compartilham de realidades que se encontram. Elas, as cinecidades, não são imutáveis; são frutos de análises que levam em conta os contextos de sua produção, pois o imaginário está ligado à presença e à temporalidade e é construção permanente.Trata-se de uma criação incessante e em correlação com a história, com o tempo e com o espaço. 


Nesse sentido, formam uma cinecidade, por exemplo, as cidades de Londres (Invasão a Londres –  Najafi, 2016), Nova Iorque (Nova York Sitiada – Zwick, 1998) e Paris (Atentado em Paris, Watkins, 2016), tendo como ponto comum a ameaça terrorista. Essa análise só faz sentido quando estabeleço um parâmetro histórico e um recorte temporal, o século XXI e a questão do terrorismo. Sem essa dimensão histórico e concreta a cinecidade seria apenas um exercício de recorte e colagem. Na postura epistemológica adotada, baseada numa perspectiva Complexa (Morin), assumo a ideia de que o espaço real concreto é tão contaminado pelo imaginário como o imaginário se erige a partir das experiências e dados oriundos do real concreto. Assim, não somente a representação fílmica remete ao que se encontra na cidade concreta, como também a cidade representada molda concepções e ações no mundo vivido. Pensemos: a nossa relação com a cidade nem sempre acontece por meio de uma vivência in loco, mas nem por isso deixamos de estabelecer sentidos para os espaços concretos. Partindo disso, me interessa a relação entre a imagem da metrópole e o seu cotidiano; pois, é dessa relação que surgem as cinecidades.


Fonte imagem: Medianeras (Gustavo Taretto)


Fragmento de dois artigos:


Representação da metrópole latino-americana no cinema contemporâneo e formação de uma cinecidade (https://www.socine.org/wpcontent/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2017(XXI).pdf)


Metrópoles em crise e formação de uma cinecidade nos cinemas brasileiro e argentino (https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/21936/17459)

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