Texto de Alisson Gutemberg


Todo filme é produto de uma engenharia complexa que envolve planos, enquadramentos, sons, encenações, etc. Elementos que juntos constituem a linguagem cinematográfica, que, basicamente, é fruto da relação invisível de uma cena com a outra. E essa técnica, aparentemente simples, criou um vocabulário e uma gramática própria, inovadora.


Imaginemos uma cena.


Um casal dentro de um quarto com uma janela aberta que dá para rua. Outra imagem, outra tomada, sucedendo a primeira. Aparece, na rua, um indivíduo com olhar fixo para uma janela. Hoje, a justaposição dessas imagens, nessa ordem, nos revela que o homem viu, pela janela, o casal.


Diferentemente da escrita, linguagem dominante nos séculos precedentes ao cinema, onde as palavras estão sempre de acordo com um código que conhecemos ou que somos capazes de decifrar, a narrativa cinematográfica utiliza-se de linguagens múltiplas para produzir sentido: visual, escrita, oral.



Agora, imaginemos Laranja Mecânica. Filme e livro. Inclusive, em texto anterior, já citei esse exemplo aqui. A cena em que Alex DeLarge e seus drugs invadem a casa de um escritor e o agridem juntamente com sua esposa, é construída diferentemente respeitando as especificidades de cada um desses meios. O que reforça, desse modo, o aforismo de McLuhan de que o meio é a mensagem.


No livro de Anthony Burgess, F. Alexander é apresentado como escritor por meio das palavras. São essas as convenções textuais. Por outro lado, no filme de Stanley Kubrick não é por meio de uma cartilha, com uma frase, entre uma cena e outra, que se apresenta F. Alexander. Ainda que pudesse colocar essa informação em um diálogo, também não é desse jeito que Kubrick o apresenta. A apresentação é feita por meio de objetos icônicos, que, estabelecidos dentro do imaginário social, identificam o personagem como escritor. São a máquina de escrever presente no escritório, e a estante repleta de livros, que produzem o sentido desejado.



Desse modo, ainda que, em suas primeiras experiências, o cinema tenha buscado o seu reconhecimento em linguagens já estabelecidas, como a literatura e o teatro, foi somente com o desenvolvimento de uma gramática própria, em respeito às particularidades do meio, que a narrativa cinematográfica se consolidou no espaço social. E na base dessa gramática está justamente a montagem. Ela é a essência da linguagem cinematográfica.


Mas, afinal, o que é a montagem?


Como destaca Aumont, a montagem cinematográfica é a organização dos planos de um filme em certas condições de ordem e de duração. É o princípio que rege a organização dos elementos fílmicos visuais e sonoros e o agrupamento desses elementos organizando-os. Ou seja, de modo geral, trata-se da colocação lado a lado de dois elementos fílmicos cujo intuito é a produção de um efeito específico. A sua principal função, nesse caso, é o encadeamento da narrativa ao proporcionar a organização dos elementos da ação por meio de uma relação de causalidade e/ou temporalidade diegéticas.


Ainda assim: como a justaposição de imagens produz sentidos, e, consequentemente, narrativas? Voltemos ao exemplo dado acima. No plano um, o casal aparece dentro de um quarto com uma janela, que dá para a rua, aberta. No segundo, surge um homem com um olhar fixo para uma janela. As convenções a que estamos habituados nos faz compreender que o homem do plano dois está observando o casal em uma atitude voyeur. Esses quadros, separadamente, não produziriam o mesmo efeito, não teriam essa representatividade. É através da justaposição de imagens, que, sozinhas, não produziriam os efeitos desejados, que a montagem atua e estabelece sentidos para a narrativa. Por isso, a montagem é a essência da gramática cinematográfica. Gramática essa que constitui a linguagem que insere o cinema no âmbito do imaginário simbólico.

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