Texto de Alisson Gutemberg


Escrever sobre um filme que está em pauta não é das tarefas mais fáceis; pois, queira-se ou não, o risco de ser repetitivo, de falar mais do mesmo, é alto. Por conta disso, irei me centrar em dois aspectos: 1) diálogo com a tradição cinemanovista (e quando falo em tradição refiro-me à trilogia do sertão do Cinema Novo) e 2) discurso acerca da geopolítica global. Peço desculpa, desde já, se este conteúdo não acrescentar algo novo. Como disse, não é fácil escrever sobre um filme que todos têm escrito nos últimos meses.


Há duas questões em Bacurau que, para mim, são fundamentais. A primeira é situar a obra na filmografia de Kleber Mendonça Filho (os longas). Nesse caso, em O Som ao Redor, seu primeiro filme, o diretor trabalha com a relação rural x urbano. No segundo, por sua vez, Aquarius, o contexto é majoritariamente urbano. Já Bacurau, seguindo a tendência, como deve ser, é completamente rural.


E esse movimento é a primeira relação com a tradição cinemanovista. É um retorno para filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha) e os Fuzis (Ruy Guerra), por exemplo. Além disso, Bacurau coloca em cena sujeitos que, historicamente, compõem espaços de exclusão. Exatamente como fez o Cinema Novo. Por fim, há ainda o espírito de revolta que também atravessa as narrativas de Glauber Rocha, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos.


A segunda questão é entender que Bacurau é uma alegoria sobre a nossa condição subdesenvolvida e sobre o nosso lugar no estágio atual do capitalismo. Um estágio marcado pelo sistema de financeirização e pelo aprofundamento do processo de automação. E nesse ponto, mais uma vez, há aproximação com a trilogia do Cinema Novo (a perspectiva alegórica).


A partir do final do século XIX, o capitalismo elevou o trabalho, a produção, à condição central de geração de riquezas. E essa condição foi responsável por uma certa valorização do indivíduo enquanto força produtiva (ler A Condição Humana - Arendt e Metamorfoses da Questão Social - Castel) . É disso, por exemplo, a política de saúde preventiva, o saneamento básico (biopolítica - Foucault), a valorização salarial, e mais uma série de ações voltadas para o sujeito. 


No entanto, nas últimas décadas, a produção tem perdido espaço, como vetor de construção da riqueza social, para os sistemas de financeirização. Além disso, quando necessário, em muitos casos, a automação tem tomado o lugar do sujeito no processo produtivo. E é justamente sobre esse cenário que Bacurau se debruça. É por isso que, no filme, os invasores são estrangeiros, figuras do primeiro mundo, inseridos nessa nova dinâmica do capitalismo global. E os alvos somos nós, terceiro mundo, o excesso, a sobra, desse novo cenário. Bacurau é uma alegoria. Uma alegoria que, inclusive, aborda a mesma questão que é debatida no documentário Indústria Americana. No entanto, como deve ser, do nosso ponto de vista. Do ponto de vista da periferia do mundo.


Fonte imagem: Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles)


Referências:

A condição humana - Hannah Arendt (https://amzn.to/2UiWQKR)

Metamorfoses da questão social - Robert Castel (https://amzn.to/2BHIHk1)

Nascimento da biopolítica - Michel Foucault (https://amzn.to/3h6mIn5)

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