Texto de Alisson Gutemberg


Como apontado por Jean-Claude Bernardet, por exemplo, de modo geral, pode-se afirmar que o espaço da autoria é o universo da mesmice; pois, para depurar temas, enquadramentos etc. que lhe agradam, ao longo de sua obra, o autor tende a se repetir incessantemente. Por exemplo: em filmes de Pablo Trapero, muitas vezes, a cidade de Buenos Aires é reiteradamente representada como um espaço marcado por desigualdade social, violência urbana, corrupção e desemprego. Um olhar, nesse caso, que aparece como elemento poético em filmes como Mundo Grúa (1999), El Bonaerense (2002), Carancho (2010) e Elefante Branco (2012); e, que, ao mesmo tempo, demarca uma unidade temática.


Por outro lado, do ponto de vista técnico, sua obra não apresenta essa mesma unidade. Por exemplo: há filmes de Trapero com narrativas de impressões cruas, realistas, e com uma perspectiva mais independente ao mainstream. É o caso dos seus trabalhos iniciais: Mundo Grúa e El Bonaerense. Mundo Grúa, inclusive, tem uma abordagem técnica que se volta para uma ontologia da imagem e que, consequentemente, remete ao Neorrealismo italiano. Do mesmo modo, há filmes seus que se caracterizam pela apropriação da cartilha do cinema de gêneros, com simbolismos convencionais de filmes de ação e policial. Carancho e Elefante Branco, nesse caso, são exemplos que se enquadram nessa perspectiva.


No entanto, como disse, apesar de sua obra demonstrar um hibridismo técnico, estilístico, ao mesmo tempo, demarca a existência de uma unidade temática: em cada um desses filmes, a cidade de Buenos Aires é representada por um olhar distópico recorrente. Desse modo, a dimensão do espaço representado como lugar vivenciado (Certeau) é um dos princípios constitutivos de sua poética. O espaço potencializado e atualizado pelo uso, pela vivência temporal dos indivíduos é uma preocupação permanente de sua obra, e, por isso, se configura como uma marca autoral reconhecível em meio aos conflitos e hibridismos que o caracterizam. 


A articulação entre espaço como lugar praticado e representação desse mesmo espaço por meio da linguagem fílmica ficcional adquire, na obra de Trapero, um significado distintivo. Como elemento de linguagem e componente estético que ultrapassa a ideia de locação, o espaço presente no universo diegético do diretor surge como uma distinção autoral por se mostrar impregnado pela realidade do cotidiano representado, inclusive, em alguns casos, com um tratamento de tipo documental. Partindo-se do pressuposto, nesse caso, de que o propósito da narrativa cinematográfica não é inventar histórias que se assemelhem à realidade, mas, em vez disso, transformar a própria realidade em história (Ler sobre a perspectiva fenomenológica na obra de Robert Stam – Introdução à teoria do cinema). 


Os personagens desses filmes são oprimidos pela realidade distópica do olhar do diretor. Desemprego, corrupção sistêmica, desigualdade social, violência, fuga inevitável e morte são as referências para suas identidades, suas condições de existência ficcional, e, que, ao mesmo tempo, convergem com o contexto extra-fílmico de uma sociedade historicamente desigual e subdesenvolvida. Por isso, a realidade cotidiana crítica é o contexto e o eixo condutor dos enredos e da construção identitária dos personagens de Pablo Trapero, e, consequentemente, uma marca autoral.


Fonte imagem: Elefante Branco (Pablo Trapero)


Referências:


O autor no cinema: a política dos autores: França, Brasil anos 1950 e 1960 - Jean-Claude Bernardet (contribuição de Francis Vogner) (https://amzn.to/3f4FE3L)

A invenção do cotidiano - Michel de Certeau (https://amzn.to/2A0KPms)

Introdução à teoria do cinema - Robert Stam (https://amzn.to/3cJIh9o)



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