Texto de Alisson Gutemberg


De modo geral, a modernidade pode ser compreendida em três níveis: período histórico, experiência cultural e projeto (Beatriz Jaguaribe). Enquanto recorte histórico, nesse caso, o século XIX foi o momento de consolidação da experiência moderna; já o seu aspecto cultural leva em conta elementos que perpassam pelo desenvolvimento da metrópole e de linguagens estéticas ligadas ao realismo. Por fim, a modernidade, pensada como projeto, tem no legado da racionalidade iluminista o seu aspecto basilar.


Neste texto, me interessa, justamente, o seu projeto. Para, a partir disso, observar a obra de Stanley Kubrick. Ainda assim, no entanto, em sua filmografia, é possível encontrar filmes que investigam a modernidade nos três níveis aqui apontados. Por exemplo: o recorte histórico é observado em Barry Lyndon. Filme que se passa no século XIX e que aborda a formação dos Estados-Nação, e sua estrutura militar, pela trajetória do personagem Redmond Barry. Por sua vez, a experiência cultural é retratada pelo cotidiano urbano. Melhor representado em Laranja Mecânica. Por fim, a modernidade, enquanto projeto, é debatida em boa parte de sua filmografia. Vale destacar, por exemplo, 2001: Uma Odisseia no Espaço que discute a racionalidade científica e o avanço tecnológico. Diante disso, é possível compreender a modernidade como uma preocupação fundamental do universo kubrickiano. E é justamente isso que busco demonstrar aqui.


O desenvolvimento da modernidade europeia impactou a estruturação social do globo. É verdade, no entanto, que a nível ocidental essa influência foi mais intensa. Ainda assim, não se pode negar as mudanças culturais, econômicas e sociais proporcionadas pela colonização da Índia, por exemplo, na primeira metade do século XX (Edward Said) ; ou o fato da expansão do capitalismo ter alcançado países como China e Japão. Considerações que, nesse caso, nos remetem à ideia de que modernidade, capitalismo e globalização são termos imbricados e que se complementam.


De acordo com Bauman, desde o início, a modernidade esteve ligada ao eurocentrismo e a um ideal civilizatório por meio de um pretenso tom de superioridade. Traduzido, desse modo, em ideal de civilização. Por isso, enquanto projeto, a modernidade foi um fruto do legado iluminista do século XVIII. E foi justamente essa concepção de superioridade e inferioridade que sustentou um ideal de progressão da história por meio de uma linha contínua arraigada na certeza de que a racionalidade, a ciência, campo verdadeiro e inquestionável, seria capaz de promover o fenômeno da universalização. No entanto, como aponta Bauman, ao curso do século XX, essas certezas deram espaço para a ambivalência. E é justamente nesse contexto, marcado pela descrença no progresso contínuo e inequívoco, que se insere a obra de Stanley Kubrick. Uma obra que, nesse caso, questiona as verdades irrefutáveis do projeto moderno.


Basicamente, em sua filmografia, Kubrick traz essa ambivalência ao passar por temas como: ameaça nuclear, conquista do espaço e mau uso da ciência. Doutor Fantástico (Stanley Kubrick, 1964), 2001: Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), por exemplo, interrogam o futuro ao apontar consequências ligadas ao desenvolvimento da modernidade. No primeiro dos filmes, observa-se a ciência e a ameaça nuclear. Por sua vez, em 2001: uma odisseia no espaço a ciência também aparece como ponto central. No entanto, em um foco distinto: a sua abordagem se concentra em aspectos como o desenvolvimento tecnológico e o domínio da máquina. Já em Laranja Mecânica, há a metrópole moderna e o problema da violência urbana. Paralelo a isso, há também a ambivalência da ciência representada pelo tratamento Ludovico.


Nessa lógica, fica evidente que há uma preocupação no cinema de Kubrick com a crença no progresso e no desenvolvimento humano prometidos pela racionalidade moderna. Além disso, uma outra característica do diretor, que o insere como um crítico da modernidade, é uma certa descrença com aspectos do Estado. Uma descrença que, nesse caso, perpassa por personagens como: Coronel Dax (Glória Feita de Sangue). Alex De Large (Laranja Mecânica), Soldado Pyle (Nascido para Matar), entre outros. Para Kubrick, o Estado pode suprimir o indivíduo (Nascido para Matar, Laranja Mecânica) e promover destruições (Glória Feita de Sangue, Nascido para Matar e Doutor Fantástico).


Por fim, ainda é possível citar O Iluminado, cujo enredo, entre outras coisas, traz uma reflexão sobre o trabalho. Quando, em meio a um surto psicótico, o personagem Jack Torrance afirma: “muito trabalho e pouca diversão fazem de Jack um sujeito infeliz”. A relação entre modernidade e trabalho é ponto de análise na obra de Arendt, por exemplo, que revela o lugar do trabalho, no âmbito da sociedade moderna, como um dos principais traços do projeto modernizador. Além disso, é também elemento de representação da vida moderna nas artes. Como ocorre, por exemplo, no filme de Charles Chaplin (Tempos Modernos) e na obra literária de Franz Kafka (A Metamorfose).


Fonte imagem: Medium.com


Referências:

O choque do real - Beatriz Jaguaribe (https://amzn.to/2UeAiuL)

Cultura e imperialismo - Edward Said (https://amzn.to/2A7kumz)

Modernidade e ambivalência - Zygmunt Bauman (https://amzn.to/2Ug0Ag5)

A metamorfose - Franz Kafka (https://amzn.to/3eQKKAc)

Kubrick - Michel Ciment (https://amzn.to/3eU7SxL)

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